“Aqui é sempre ‘shopping day””, diz Rodriggo Lombardo, brasileiro que trabalha como bartender em um navio, ao sugerir o que fazer nos arredores de Kusadasi, na Turquia. A cidade, porta de entrada dos cruzeiros mediterrânicos no país, tem sua fama justificada pelas ruas estreitas recheadas de lojas de “sheeshas” (os clássicos narguilés), lâmpadas artesanais, pashminas e artigos falsificados que disputam a atenção e os dólares dos turistas. Pela oferta de produtos e inabalável insistência dos vendedores – pechinchar aqui é palavra de ordem – um passeio pelo centro comercial de Kusadasi é o programa de praxe a ser proposto. Mas deixar de aventurar-se além dos limites do centro comercial significa perder Éfeso, a segunda maior cidade do mundo antigo.
Uma falha histórica, portanto.
A distância de quase 9 km da costa e o calor, especialmente no verão turco, podem tornar a opção das compras mais apreciável. Mas Éfeso tem quase 3 mil anos de história e três fortes motivos para uma visita: vestígios dos antigos gregos, romanos e jônios, construídos e reconstruídos um século após o outro, entre terremotos, incêndios e conquistas, naquela que já foi a cidade de maior importância estratégica depois de Roma: foi o centro administrativo e politico do Império na Ásia, e chegou a ter 400 mil habitantes.
O caminho desde Kusadasi é contornado pelas fileiras rústicas de oliveiras e ciprestes, contrastando com o amarelo ocre da terra e o azul do céu. A viagem é conduzida por um motorista de taxi que, simpático, contava que há muitos anos toda esta área foi submersa. Seu nome, aliás, era Aegean – “Egeu” em inglês, como o mar de azul absoluto que banha Grécia e Turquia e faz o pano de fundo de épicos como a Ilíada e a Odisséia. Perguntado sobre a coincidência, ele sorri orgulhoso: “sim, meu pai deu a mim e a meu irmão nomes de mar. Eu sou Egeu e ele se chama Jônio”. Uma analogia divertida, se pensarmos em viajar no tempo tendo como bússola o próprio Egeu – assim como os antigos guiavam-se.
Uma multidão nos acessos ao sítio arqueológico dá o tom do passeio: é preciso ter paciência com o fluxo incessante de turistas. Mas as boas vindas são dadas pelas colunas em mármore branco, resquícios do trabalho e arte de jônios e gregos. Passear pelas ruínas é um exercício de imaginação, favorecido pelas histórias dos guias e pelo estado de algumas instalações, conservadas o suficiente para termos a sensação de caminhar por um cenário de filme de época.
Ruínas dividem espaço ao fundo com gruas ao fundo, numa clara referência de que a história não está totalmente à tona. Estima-se que nem 20% das ruínas foram exploradas, o que faz da cidade um dos mais ricos sítios arqueológicos do mundo. E que surpreende não apenas pelo tamanho, mas pela sua herança estrutural organizada, cuja nítida complexidade torna o passeio uma verdadeira aula de história, arquitetura e planejamento urbano.
Uma excelente oportunidade para ver, portanto, exemplos concretos da engenhosidade romana muito além das paredes do Coliseu. Como a construção de um complexo sistema hidráulico, onde a água coletada da chuva era armazenada através de um reservatório no alto dos montes próximos e trazida, em canos e sob pressão, para as casas de banho públicas e residências de cidadãos nobres. Explica-se aí, em parte, o fato de que as residências mais luxuosas se localizavam nas encostas, onde o fluxo de água encanada era mais intenso. Sistema de calefação e estrutura para banheiros privados também eram privilégios para as classes abastadas, despertando uma rápida reflexão de que as diferenças entre as camadas sociais em todo o mundo não mudaram muita coisa desde então.
Ou mudaram um pouco, ao menos no cotidiano – felizmente. As ruínas mais curiosas são os banheiros públicos: construções amplas com latrinas dispostas lado a lado para uso coletivo. A ausência de privacidade dá lugar à higiene: abaixo das latrinas existe uma poderosa corrente de água constante, que leva os detritos e evita o mau cheiro; o mesmo sistema hidráulico garantia água corrente e limpa em discretas canaletas próximo aos pés dos usuários, destinadas para higiene pessoal. Mas, mesmo sendo instalações públicas, os nobres ainda contavam com privilégios especiais: “os tampos das latrinas eram feitos de puro mármore”, explica Aegean/Egeu, “e ficavam muito frios durante o inverno. Por isso, era prática comum da nobreza enviar seus escravos aos banheiros públicos antes para sentarem-se nas latrinas até esquentá-las com o calor do corpo. Quando isso acontecia, o nobre era informado de que a latrina estava pronta para ser usada”. Aegean e os outros guias riem, não se sabe se pelo inusitado da história ou pela mímica que, espontaneamente, ele faz para melhor “ilustrar” aos turistas o antigo modus operandi.
São estes contrastes entre o cotidiano e o grandioso que regem a vida em uma grande cidade; ainda mais se era parte da antiga administração romana. Casas de banhos e ruas de pedestres ainda ecoam os traços de uma civilização que também presenciou o apogeu dos grandes imperadores e as construções feitas em seus nomes. É o caso do templo dedicado a Julio César, construído por seu filho adotivo Otávio – autoproclamado Augustus após assumir o poder. Muito além do culto que homenageava as virtudes divinas atribuídas ao imperador assassinado, tal templo assinala a força e a presença de Éfeso enquanto província romana no cenário mundial da época. Semelhante importância tinha a Biblioteca de Celso, a mais bem conservada e impressionante das ruínas: com espaço para abrigar 12.000 pergaminhos, foi a terceira mais importante do mundo antigo depois das bibliotecas antigas de Alexandria e Pérgamo; e assim como estas, também seu precioso acervo foi completamente destruído.
A fachada de puro mármore resistiu, porém, aos ataques dos godos, e seus detalhes esculpidos em baixo-relevo são guardados até hoje pelas estátuas das 4 virtudes máximas: Sabedoria, Conhecimento, Virtude e Inteligência.
Existem algumas teorias para o declínio de Éfeso, mas acredita-se que a decadência da cidade foi determinada pelo assoreamento natural do porto (na Antiguidade, a cidade ficava às margens do mar Egeu, e não aos atuais 8 km da costa). A erosão natural, o tempo, os constantes saques e terremotos consecutivos reduziram a glória da cidade às ruínas de hoje. Na saída do sítio, é impossível evitar a reflexão – atual – sobre a fragilidade do poder de uma cidade e seu povo frente à marcha inexorável do tempo. É verdade, contudo, que embora o brilho e a vida estejam no passado, suas ruínas possuem uma majestade que ainda teima em resistir ao tempo, e que sobrevive nas pedras e histórias de seus visitantes mais ilustres. O viajante pode sentí-la vívida no Teatro de Éfeso, que abrigava 25.000 espectadores durante jogos, lutas entre gladiadores e cerimônias religiosas; Paulo de Tarso, que morou por 3 anos na cidade, teria pregado ali. Ou ainda no fluxo de pedestres cujos passos ainda estão gravados nas calçadas de mosaico da Rua dos Curetes ou na Rua do Porto, que ligava o Teatro ao cais e cujos 500 metros de extensão ainda sobrevivem dos originais 800. Trajeto que foi, inclusive, palco da entrada triunfal de Marco Antônio e Cleópatra, durante uma visita à cidade, provocando publicamente o desagrado de Roma e calcando o caminho para o desfecho trágico que aconteceria anos depois.
Com Éfeso o final não foi diferente. Mas jóias antigas, assim como histórias, tem seu valor avaliado no peso e na pureza única que a formou. E, nesse quesito, Éfeso tem um quilate incomparável.
Antes de visitar
Visitar o sítio arqueológico da antiga cidade de Éfeso exige uma certa resistência: o tempo recomendado para explorar a área são 2 a 3 horas de caminhada, sem sombra ou parada para descanso – não é má idéia, logo, propor estender a visita se o sol estiver muito forte ou o fôlego, muito curto. O comércio dentro do parque é proibido, e ao contrário de sítios como o Forum Romano na capital italiana, Éfeso não conta com fontes ocasionais de água para abastecer garrafinhas a tiracolo. Por isso planejamento é a máxima da visita: protetor solar, chapéu ou sombrinha, garrafa de água e um calçado confortável são aliados do turista para enfrentar a maratona de calor, sol, pedras e história.
Conhecendo os arredores
Residência da Virgem Maria: confiada aos cuidados de João Evangelista após a crucificação de Jesus, a mãe do Cristo peregrinou com o apóstolo durante suas pregações, até ser trazida a Éfeso. Para fugir das perseguições, viveu anos em uma pequena casa afastada nos arredores do sítio arqueológico, o que é confirmado por registros da época e um relato bem descrito das visões da freira alemã Anne Katherine Emmerich, comprovado posteriormente por pesquisadores e pelo próprio Vaticano. A casa, em si, não é original (foi destruída e reconstruída algumas vezes), mas sua importância permanece imaculada para os cristãos, que se enfileiram diariamente para visitar o santuário e deixar mensagens com pedidos de ajuda e agradecimento.
Templo de Ártemis: um grandioso complexo de 127 colunas, construído em homenagem à Diana, deusa da caça. Suas dimensões majestosas, de aproximadamente 131 metros de comprimento, 72 de largura e 20 metros de altura, foram reconstruídas diversas vezes, recuperando-o de ataques e incêndios. Peregrinos de todo o mundo antigo visitavam o templo para adorar a deusa, representada em uma estátua de mítica de ouro, prata e ébano. A manutenção era feita por sacerdotisas que se dedicavam a estudos de magia, mas há registros de jovens que foram enviadas sob o pretexto de servir ao templo, mas seguiam de fato para a prisão perpétua; entre elas, Arsínoe, irmã de Cleópatra, acusada de traição. Mas ao contrário das ruínas do sítio de Éfeso, a viagem ao tempo fica mais a cargo das histórias e da imaginação: de toda a opulência do templo dedicado à caça e considerado uma das 7 Maravilhas do Mundo Antigo, só resta hoje uma única coluna sustentando um ninho de pássaros e o peso de séculos de uma glória distante.
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Muito bacana, estou planejando um mochilão pelo Oriente Médio e Éfeso está na lista.
Oi, Donda. Tudo bem?
Seu post foi selecionado para a #Viajosfera, do Viaje na Viagem.
Dá uma olhada em http://www.viajenaviagem.com
Até mais,
Natalie – Boia Paulista
Oi Clarissa,
Lindo o seu post! Fui a Éfeso ha uns anos atras e fiquei com a maior saudade vendo as suas fotos! Realmente eh um dos grandes tesouros da Turquia!
Abraços,
Deb
Deb, que bom que você gostou! Sabe o que fiquei impressionada? Quando escrevi sobre Éfeso, imaginei que poucas pessoas iriam curtir, porque a maior parte dos passeios procurados são as compras, e pouca gente curte conhecer ruínas – ainda mais no calor senegalês que fazia no dia… Mas me surpreendi com a quantidade de comentários que recebi depois, nas redes sociais! Bom saber que Éfeso é apaixonante para mais pessoas também!
Olá,
Em maio irei fazer um Cruzeiro e um dos locais é Kusadasi… A partir do Porto é facil chegar em Efeso? E onde fica a casa da Virgem Maria? Obrigada!
Gabriela, é fácil chegar do porto de Kusadasi sim (foi o porto em que eu parei também). Mas você precisa contratar um táxi para fazer isso, leva-se um tempinho de estrada. A Casa da Virgem Maria fica no monte Koressus, perto de Éfesus e dá para ir de taxi também!
Parabéns pelos comentários. São muito úteis.
Em setembro do próximo ano faremos um cruzeiro pelas ilhas gregas (minha esposa 64 e eu 63),
Na sua opinião, pelo pouco tempo disponível, o que é preferível: fazer o cruzeiro ofertado pelo navio (Royal Caribbean) ou contratar um tour local
Agradeço a resposta
Oi, Luiz, tudo bem?
Isso depende do tour local que você contratar. Creio que muitos deles ofereçam o mesmo passeio.
A vantagem do tour ofertado pelo navio é que você contrata no próprio navio e já sai de lá junto com todo mundo para fazer os passeios (o tour local você tem que negociar qual que você quer, já que costuma ter um monte oferecendo passeio logo na chegada ao porto, e lá há um costume de sair oferecendo e insistindo para comprar tudo, é meio chato).
Por outro lado, o tour vai te levar exatamente para onde você quer, pelo tempo que você quer (como fizemos com o táxi), vai te esperar e você faz as coisas no seu tempo (sem ter que ficar esperando ou correndo para pegar o ônibus do tour do navio com todo mundo).
O que eu fiz, quando fui: tanto nas ilhas gregas quando na Turquia contratamos um táxi (isso foi a parte chata porque negociar com taxista é chato em qualquer lugar do mundo, mas só) e fomos primeiro nos locais turísticos que queríamos e depois à praia. Em alguns deles, ainda deu tempo de fazer comprinhas. Eu achei que valeu a pena, porque montamos o tour do nosso jeito (mas só fique de olho na hora da volta, para não atrasar a hora de pegar o navio!!!!!)