Tem experiências na vida da gente que, de tão mágicas, a gente até duvida da simplicidade.
Descobri isso caçando trufas. Negras, na Itália.
Soa chique, né? Mas foi de uma simplicidade só. Quase crua, e ao mesmo tempo apaixonante.
Caçar trufas é puro sentido. Os cinco, todos de uma vez.
Conto tudo, prometo: ensino direitinho como repetir a experiência, mas lá no final do post. Mas enquanto isso, permitam-me por favor contar com detalhes como é que foi.
Só que conto sem pressa, tá? Porque quando é coisa de pele e sensação, tem que ser devagar, que é para a gente não perder nada do sabor…
E juro, vocês não vão se arrepender… 🙂
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Foi numa tarde ensolarada que tudo começou. Mais especificamente, por volta das 18 horas de um dia de verão em julho, em que o sol ainda tá alto, mas a brisa já está morna o suficiente na pele.
Deixamos Norcia, uma cidadezinha charme-e-delicadeza encravada no coração da Umbria, Itália, e seguimos de van para uma dos montes ao redor. Um pouco mais de 15 minutos de carro, entre pequenas fazendas douradas de trigo maduro e colunas de ciprestes desenhadas aqui e ali.
Paramos com a van num campo afastado, cheio de pés de lavanda ainda verdes. Lá, chegando em uma Uno verde velhinha, estavam os verdadeiros caçadores do dia.
Seus nomes: Brigante, Lulu e Nina.
Dois rapazes traziam os 3 cães da raça Cocker Spaniel para a tarefa. Segundo eles, sempre são três cães a realizar a caça, sendo um mais velho e experiente, e os outros dois filhotes, de modo que cada caça é também uma oportunidade de treinar os animais. Nina, a mãe e mais experiente, já tinha 8 anos, e a caçula e filhote era a Lulu, uma cocker preta com a hiperatividade de seus 8 meses.
Segundo os guias, as caçadas de trufas eram inicialmente feitas com porcos, dotados de um faro excepcional. Esses caçadores, porém, tinham um incoveniente: eles próprios apaixonados por trufas, não raro encontravam, cavavam e as comiam, antes mesmo de dar tempo aos homens que os acompanhavam poder resgatá-las.
Os cachorros tornavam a caçada mais fácil – e porque não dizer, mais fofa – mas exigiam treinamento e instruções.
A nós, bastava acompanhar. Já encantados.
Algumas palavras de ordem e pronto: os animais eram soltos no campo. Felizes da vida.
Acompanhá-los com os olhos era igualmente delicioso.
Bastou alguns segundos, aliás, para o primeiro prêmio do dia: Nina, a mais experiente, voltou de um arbusto com a primeira trufa, descoberta e descavada por ela mesma.
Eu estava encantada com tudo: com a destreza do animal, com a simplicidade da caça, com o cheiro da trufa… Era tão fácil, assim?
O guia que nos acompanhava explicava o processo: a trufa é um tipo de fungo que cresce no solo, em condições muito específicas – daí ser tão raro encontrá-las. Na Itália, os arredores de Norcia são conhecidos pela trufa negra, que tem a superfície mais rugosa, um aroma menos forte que o da branca, e que se desenvolve próxima às raízes de arbustos, e especialmente de árvores como carvalhos e castanheiras, a 20 centímetros da superfície do solo. Por isso, os cães são treinados a farejar próximo às raízes, e se a trufa estiver próxima da superfície, eles mesmos conseguem cavá-la e entregar aos donos.
Por isso, inclusive, que os horários da manhã cedo ou do fim da tarde eram os mais propícios: quando o sol está menos forte e os aromas do mato, sutilmente mais perceptíveis.
A caçada continuava, e os cães eram convidados a prosseguir, farejando campo afora. E que campo…
Nós seguíamos, sem pressa nenhuma: nem dos cachorros, nem dos guias, nem de nós. Se a nós faltava o faro aguçada de captar trufas escondidas, sobrava o encantamento com a brisa deliciosa do dia, que trazia um cheiro morno de lavanda verde, vinda dos pés de flores que desabrochavam esparsos pelo campo em que a gente estava.
De brinde, a vista das montanhas verdes voluptuosas à nossa frente.
É… aprendi que caçar trufas é uma experiência que vai além das trufas. É, mais do que tudo, sensorial…
A gente continua a caminhada. Eu me pergunto se eu ficaria chateada se a gente não encontrasse mais trufa nenhuma…
E, enquanto andava, procurava lembrar se já tinha visto na vida uma paisagem mais verde e amarela do que essa.
O dia quente ajudava, sem derreter: parecia que deixava o mundo todo mais dourado, e morno, e temperado de aromas…
Então, fica aqui a minha humilde dica: quando você for, vá sem pressa. Dê tempo para deixar os sentidos à flor da pele. Por que Itália, tudo que é bonito e gostoso está nas pequenas coisas…
Mas eis que, de repente, Lulu dá sinais de que encontrou alguma coisa…
E, mais dali a pouco, Brigante também. E, ainda em treinamento, começa a cavar para depois deitar-se e apontar o local com o focinho, aguardando a chegada do dono.
O dono chega, ajudando com uma pequena enxada, com o animal atento de olhos fixos… (e nós também!).
E ali, em meio à terra e às raízes, está ela. Enorme, linda e perfumada. 🙂
O treinamento inclui prêmios para os nossos guerreiros: a cada trufa encontrada, eles ganham um pedaço de carne. Justíssimo, aliás.
E foi mais um, e mais outro… Ao final de uma hora (que pareceu nem passar direito, tão deliciosa que foi) tínhamos já o resultado da nossa caçada…
E eu, morrendo de vontade de levar aqueles três cachorros para casa!
E o aroma, como explicar? A trufa negra recém colhida tem um aroma completamente diferente da mesma trufa que sentimos já industrializada, com azeite, ou conservada através de presunto ou de queijo. Segundo o guia, após ser colhida, a trufa deve ser ralada em até 24 horas, para que não perca as características naturais, e experimentá-la assim, recém retirada do solo, é sentir um sabor e um aroma que é impossível preservar pro muito tempo.
E é difícil explicar: o aroma é fresco, rústico, forte, que parece uma mistura de cheiro de cogumelo, de terra molhada e de ervas aromáticas, mas tudo de um jeito que dá vontade de comer… E bastou retirá-la da terra para sentir, dali mesmo do campo, o seu cheiro misturado à lavanda do campo que pairava no ar.
Que tarde literalmente deliciosa, essa… 🙂
Acabava ali nossa “caçada”. Era hora de voltar à Norcia, que nos observava lá de baixo no vale da montanha…
A gente ia descendo, preguiçosamente, até o carro. Ver Norcia assim do alto, e seus arredores, era algo a fazer assim, devagar quase parando…
E para quem receava que a caçada não seria muito proveitosa – haviam nos dito que a melhor temporada das trufas é, na verdade, de final de novembro a final de janeiro, e estávamos em julho – eis os troféus do dia! Com direito a um trufão!
Subimos na van e nos preparamos para voltar, embriagados de sol e de aromas, quando eis que alguns metros à frente nossa van pára. E os donos dos cães preparavam, numa mesa rústica de madeira reservada à um canto do campo de alfazema, um breve piquenique. Surpresa!
Afinal, que graça tem caçar trufas negras se a gente não pode experimentar os frutos de nossa caçada depois? 🙂
“O segredo da gastronomia italiana não é receitas rebuscadas”, dizia nosso guia, enquanto servia a mesa. Nas suas mãos, uma garrafa de vinho tinto, água com gás, pão, sal e azeite. “Nossa gastronomia é absolutamente simples. O segredo do sabor está na qualidade dos ingredientes que utilizamos”.
Disse isso pausadamente, com a voz experiente de quem sabe das coisas. E enquanto isso, as trufas foram lavadas em uma fonte natural, uma a uma, para depois serem raladas num triturador especial, que cortava o nosso trufão em finíssimas fatias, quase como lascas de papel.
“Quanto mais finas as lâminas de trufa, mais acentuado era o sabor”, ele nos dizia.
Ele, certíssimo. Eu, hipnotizada.
E enquanto isso, os outros rapazes esquentavam os pães em um forno a lenha improvisado, ali mesmo no campo de lavanda. Que agora era de lavanda, de trufas e de cheiro de pão quente na brasa.
E foi assim, servida num prato de plástico, numa mesa de madeira no meio do campo, com um copo descartável de vinho tinto e com um grupo que incluía também três cachorros, que eu fiz o melhor piquenique da minha vida.
É, acho que a sabedoria da gastronomia italiana que o guia mencionou está mesmo certíssima: as melhores coisas da mesa, e da vida, são muito mais simples do que a gente imagina.
O segredo está na qualidade dos ingredientes – e às vezes alguns deles estão escondidos, mas a procura é tão deliciosa quanto a descoberta! 🙂
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Gostou da experiência e quer fazer também? Vamos lá – eis aqui o mapa da min, ops, das trufas:
– Para fazer a caça, vá para a cidade de Norcia, considerada a capital das trufas negras (as brancas são encontradas em Alba);
– Não há trem para Norcia. A forma mais rápida de chegar a esta cidade é pegar um trem até a cidade de Spoleto, na Umbria (que, tirando o nome, nada tem a ver com a franquia de massas que a gente conhece aqui no Brasil). De Spoleto, vá ao terminal rodoviário da cidade e pegue um ônibus para Norcia (em geral, os ônibus que vão para Cássia, terra de Santa Rita de Cássia, acabam passando por Norcia, mas informe-se na hora de comprar o bilhete). Outra opção é alugar o carro, que é a melhor alternativa se você quer aproveitar com mais tempo para também explorar as outras cidades da Umbria como Assis, Perugia e Terni. Neste link você consegue pesquisar preços e disponibilidade de aluguel de carros na Itália, e já fazer a reserva – em alguns casos rola um desconto para quem fecha pela internet.
– Só há um lugar que organiza o passeio, que é feito sob medida, dependendo do número de pessoas que vão, do dia, e do que eles querem (por exemplo, se querem o piquenique no final ou não). Por isso, não posso informar os preços por aqui, tem que ver com eles mesmo. Quem organiza é o hotel Palazzo Seneca, e para pedir e reservar o passeio basta ir até a recepção do hotel ou mandar um e-mail para info@exavel.com, diretamente com a agência Exavel.
– O passeio não é restrito apenas aos clientes que estiverem hospedados no Palazzo Sêneca – hospedados em outros hotéis podem ir também. Mas, como todo passeio nesse estilo, só acontece se tiver um mínimo de pessoas interessadas, ou se os interessados pagarem o valor referente ao passeio privativo, por exemplo (e mais uma vez, pessoal: detalhes devem ser tratados diretamente com o pessoal do hotel, que são de uma gentileza ímpar).
– A caça às trufas é uma atividade natural, que depende obviamente da quantidade de trufas que a natureza produz e que os animais conseguem encontrar. São várias as variáveis que fazem com que a caça seja, de verdade, uma caça, com todos os sucessos e insucessos inerentes à atividade. Então, você pode dar a sorte de encontrar vários trufões – ou não. E os pobres cachorrinhos não tem nada a ver com isso.
– Há outras opções de experiências também, como ver de perto como é a fabricação de queijo pecorino ou como é a fabricação do presunto cru (para quem não sabe, Norcia foi a cidade que “inventou”, por assim dizer, o presunto cru, e a que detém a especialidade na produção dessa iguaria.
– Quem quiser ficar no Hotel, por outro lado, vale super a pena: no próximo post pretendo falar mais dele, mas sem dúvida foi um dos melhores hotéis que já fiquei hospedada na Itália. Recomendação ultra romântica, inclusive, para casais – tipo, faria minha lua de mel aqui fácil fácil. E o preço da diária, para um hotel de primeiríssima linha como esse, não é nada absurdo.
– Para ver preços e reservar hospedagem do Palazzo Sêneca, clique aqui. Para pesquisar preços e reservar em outros hotéis em Norcia, clique aqui.
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Leia também outros posts sobre a caça às trufas, aqui:
Mari Campos: Caça às trufas: I did it!
Dicas e Turismo: Toscana: alguns passeios que você nem sabia que existiam!
Essa blogueira foi à região da Umbria, na Itália, convidada pelo Ministério do Turismo, integrando a delegação brasileira que fez parte do projeto Brasil Próximo, de colaboração entre Brasil e Itália. O objetivo foi conhecer melhor os atrativos turísticos da região, mas todas as opiniões, comentários e sugestões aqui descritas são genuínas, e representam a opinião da própria autora.
O que dizer do post, e das fotos, e da experiência sensorial, senão UAU? Levei tempo pra ler, justamente pra tentar evocar os perfumes descritos enquanto examinava cuidadosamente cada foto. Paisagens maravilhosas, e a certeza crescente de que a felicidade é sim feita de simplicidade, como esse piquenique no final da caçada.
Natalia, é isso mesmo! E olha, redefini completamente meu conceito de gastronomia e cozinha com esse passeio, sabia? Nada deles é rebuscado, é difícil de fazer… Todos os pratos – como esse simples piquenique – são feitos rapidamente, com as mãos, uma faca e um ou outro instrumento de cozinha. Só que o cuidado mesmo está com o que eles fazem: é uma atenção quase religiosa ao cuidado com o corte dos ingredientes, com a escolha da trufa, com a lavagem, com a colheita… E tudo, tudo fica delicioso – sempre cheio de perfumes, de tato e de sabores inexplicáveis.
Deve ser por isso que italiano vive gesticulando… Tem coisas que, para explicar, vão além das palavras…
Que legal! Eu não fazia a menor idéia que trufas são fungos raros, saborosos e perfumados. Tive até que dar uma pesquisada extra na internet. Com inveja aqui e querendo experimentar uma Trufa, principalmente numa ambiente completo desses.
Fiquei viajando nas descrições sensoriais.
Também tive que ler devagar igual a Natalia Itabayana ali em cima. Tentando imaginar todos os aromas.
Clarissa e esses posts inusitados que deixam a gente cheio de vontade pra imitar o passeio.
Inusitado porque nunca me passou pela cabeça um piquenique com caçada de fungos gastronômicos na Itália. E agora eu também quero! 🙂 haha
Pois é, Fernando! E eu depois que fiz isso, fiquei na cabeça que eu quero morar numa fazenda, perto de um campo, e criar cachorros caçadores de trufas.
A experiência foi fantástica e o piquenique, uma surpresa. Eu tenho uma certa queda por paisagens bucólicas, então antes mesmo dos cachorros começarem a pegar as trufas, eu já estava feliz da vida de ir num campo de lavandas numa tarde morna – já era perfumado!
Recomendo, super, o passeio – uma experiência diferente quando a gente acha que não vai encontrar experiências diferentes em destinos “batidos” como a Itália. 🙂
Que delícia de post! Sou louca por trufas. Já fiz caça às trufas brancas no Piemonte, e na oportunidade, achamos algumas poucos trufas pretas. Mas não tão grandes!!! A Feira de Trufas Brancas de Alba é uma delícia tmb. Hummmm Fiquei com água na boca com seu post 😉
bjs
Priscila Reis
Priscila, que bom que gostou! Pois é, eu achei que a gente não ia encontrar nada demais – e de repente, começaram a pipocar trufas aqui e ali. Eu tava até desconfiada, achando que eles tinham “enterrado” as trufas só para depois a gente “achar” e ficar feliz, mas desisti da hipótese quando achamos essa grandona – tava bem enterrada e eles mesmos estavam bem felizes!!
Pois é, quero conhecer essa feira de Alba, quem sabe? Agora to curiosa de experimentar a trufa branca! 🙂
Nossa! Só agora parei pra ler esse post.
Que demais!!
Sem palavras.
E as fotos estão incríveis!
Ola Clarissa,
Eu sou guia de turismo aqui na Toscana, e queria lhe dizer que eu realizo o passeio de caça as trufas na Toscana. E na Itália, a única cidade que possui trufas o ano inteiro é San Miniato, aqui na Toscana. San Miniato tem trufas brancas, pretas e marzuolo (rosas/marrons). A maior trufa branca do mundo foi encontrada aqui! Fiz alguns posts sobre a trufa no meu blog.
http://passeiosnatoscana.com/2013/06/18/resultado-do-master-tartufo-trufas-para-brasileiros-15062013/
http://passeiosnatoscana.com/2013/07/30/caca-as-trufas-tartufo-com-uma-guia-brasileira/
obrigado e parabens pelo blog!
abs
Sensacional. E eu faço o que, com a vontade de provar aquele pãozinho com trufas no azeite do final? Bjos!
Simplesmente maravilhoso este post. Parabéns pela dedicação, a preocupação com os detalhes e nos entregar algo tão valioso.
Beijinhos
Obrigado pelo excelente post.
Eu acabei de ver um documentário na tv, sobre esses “caçadores italianos” aqui em Portugal e levado pela curiosidade vim dar ao seu blog.
Mag