Porto e Londres (1)

A princípio parece que nem tem tanta semelhança assim, né?

Ledo engano. Mas eu explico.

A ideia desse post surgiu em meio à ressaca de más notícias do Brexit, que lançou o mundo todo (e especialmente a União Européia e o próprio Reino Unido) numa onda de incerteza enorme e de sentimentos anti-imigrante de um lado e anti-ingleses do outro.

Como uma pessoa que mora na Inglaterra e que acompanhou o processo com igual angústia, confesso que sofri uma ressaca amarga com essa onda, e que procurei destrinchar e debater melhor aqui, numa reflexão sóbria sobre o Brexit.

E conversando com isso, a Sara – uma portuguesa adorável que tive o prazer de conhecer quando visitei o Porto, em Portugal, em fevereiro deste ano – me fez esse convite. Ela é blogueira também – confira o excelente blog dela, o Portoalities – além de guia, e como eu estava incomodada com a onda ruim anti-UK que grassava por lá. Daí ela me propôs essa brincadeira: que nós estudássemos e contássemos as 5 similaridades entre as duas cidades, Londres e Porto, em dois posts detalhados em cada um dos blogs. O objetivo é descobrir que há muito mais em comum do que se imagina e que essa coisa de separação e de que “não temos nada a ver com o outro” não passa de balela.

Topei – e foi um exercício delicioso escrever e pesquisar esse texto, de minha parte: me ajudou a conhecer ainda melhor a cidade onde moro, bem como descobrir coisas novas sobre Porto. E publico aqui a minha parte na brincadeira com a esperança de que vocês curtam também!

Coube a mim escrever a parte inglesa – mas se você quiser saber a versão de Porto destas similaridades, leia aqui o post delicioso da Sara!

[box type=”info”] DICA: Nunca é demais dizer. Se você for ao Porto, eu super recomendo os tours da Sara Riobom (você pode agendá-los aqui!). Digo isso porque a conheci num tour com o grupo do meu trabalho, que estava de visita à cidade, e ficamos super amigas porque, bem adoramos história, turismo e porque ela é uma querida. O tour em questão que ela fez para mim foi sobre a herança judaica no Porto, mas ela também trabalha com tours de arte, Arquitetura e, claro, vinhos do Porto. 🙂 Recomendo conferir o blog dela, o Portoalities (daí vocês vêem também os outros mil assuntos interessantes que ela conhece e com que trabalha), e mandar um email com perguntas do que você quer ver, conhecer, saber… Ela fala português (obviamente!) e adora brasileiros. Não ganho comissão alguma pela recomendação, tá? A dica é de coração – a Sara me fez ver o Porto com outros olhos e experiências assim tem que ser passadas à frente!

Com vocês, Sara do blog Portoalities, guia da cidade de Porto e querida colaboradora nessa brincadeira entre as cidades
Com vocês, Sara do blog Portoalities, guia da cidade de Porto e querida colaboradora nessa brincadeira entre as cidades

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Futebol

É fácil associar futebol à Inglaterra: os ingleses são conhecidos por terem organizado as regras do esporte e ajudado a popularizá-lo em todo o mundo – embora, curiosamente, a seleção inglesa de futebol não esteja lá entre as favoritas das competições!

Mas tudo bem. Se a seleção inglesa não ajuda a ganhar títulos, pelo menos o futebol inglês continua indo muito bem obrigado (e, by the way, fazendo muito dinheiro) por causa da Premier League, a liga profissional de futebol inglês que hoje é a segunda mais assistida em todo o mundo. Só tem um problema, porém: mesmo sendo tão famosa e importante, uma das maiores críticas a este torneio é que praticamente o título de campeão das temporadas passou de mão em mão apenas entre os “cinco grandes”: Manchester United, Manchester City, Liverpool, Chelsea e Arsenal. Isso, de certa forma, criou uma rivalidade entre “os times do norte” e “os times do Sul”: sendo que esses últimas ficam em Londres: o Chelsea e o Arsenal.

Se por um lado isto não contribui em deixar a liga mais democrática entre os times do resto do país, por outro contribui muito para a experiência (ótima) de um fã de futebol viajando pela capital londrina, que pode incluir tours especiais pelo interior dos estádios de dois dos maiores times da Premier League na sua visita. Há desde os tours baratinhos e por conta própria pelo estádio e pelos museus dos clubes (alguns incluem a possibilidade de ter como guia um ex-jogador, por exemplo, a preços camaradas) até os tours hospitality mega especiais para fãs fervorosos (e endinheirados, diga-se de passagem) que incluem jantar e um encontro com um dos jogadores atuais do time pela bagatela de £3,600. Achou salgado? Bem, estes são os preços de se visitar um dos melhores clubes do mundo.

A boa notícia é que fãs de futebol não precisam gastar somas astronômicas para curtir o esporte em Londres. Assistir a um jogo da Premier League continuam sendo uma atividade um pouco mais salgada, mas a experiência tem sido cada vez melhor graças a uma série de melhorias que o futebol inglês vem recebendo, notadamente fora das quadras. As novas regras de segurança trouxeram grandes reformas e poderosos patrocinadores aos estádios de Londres, presenteando a cidade com locais como o Emirates Stadium (pertencente ao Arsenal e o 3º no ranking de melhores estádios na Inglaterra), o Olympic Stadium (casa do West Ham) e o Stamford Bridge (endereço do Chelsea) – sem falar, claro, no Wembley, o melhor estádio da Inglaterra e onde a seleção inglesa joga suas partidas.

Um detalhe: que eu tenha pesquisado, não há um lugar específico na cidade para a comemoração dos torcedores ao final de um jogo (como a Sara explica sobre a Avenida dos Aliados, em Porto, ou até como o Baixo Gávea, recordação dos meus tempos de Rio de Janeiro). Em Londres, a comemoração é bem democrática espacialmente: acontece em todos os pubs que tenham uma boa televisão. Porém, se você simpatiza com um time em especial, experimente chegar cedo nos pubs que ficam pelos arredores do clube em questão (como pubs em Stoke Newington ou Highbury & Islington, se você é um fã do Arsenal) para assistir lado a lado com os torcedores daquele time. Nesse ponto, ingleses são bem parecidos com brasileiros: ambos sabemos que assistir futebol no bar com amigos é tudo de bom!

Veja também, no Porto: Quais os melhores cafés no Porto para assistir à bola? por Sara.

Harry Potter

Mas – como disse a Sara neste post – se foi a Livraria Lello em Porto que foi responsável por parte do encantamento (e inspiração) de JK Rowling para a futura obra do bruxinho que ainda viria ganhar o mundo, Londres também deu cá sua parcela de contribuição. JK Rowling morou na capital britânica por um ano – ela havia nascido e crescido em Gloucestershire, no sudoeste inglês – enquanto trabalhava como secretária e pesquisadora para a Anistia Internacional. Ela conta ainda que lá foi onde entrou em contato com relatos cruéis e sofridos de vítimas de regimes totalitaristas, e cuja empatia e força que teve que desenvolver para ajudar tais vítimas se revelou um fértil plano de referências ao escrever posteriormente os trechos mais sombrios da saga de Harry Potter. Além disso, foi ao deixar Londres de mudança para Manchester, numa viagem em um trem atrasado que já se arrastava 4 horas, que a jovem autora conta que a idéia de um menino frequentando uma escola de bruxos surgiu “inteira” à sua mente.

O resto, como sabemos, virou história, livro, série. Mas foi só quando a saga do bruxinho virou filme que Londres voltou com pompa e circunstância ao circuito “Harry-potteriano”, emprestando vários dos seus cantinhos como locações para o filme. Tanto que hoje um dos roteiros mais populares é sair pela cidade à caça dessas locações: são 10 no total, embora a mais famosa, sem dúvidas, é a Plataforma 9/34 na estação de King’s Cross, denunciada pela longa fila de adolescentes eufóricos esperando para tirar uma foto com o carrinho do Harry atravessado na parede.

platform 934

Algumas das locações não tem tanta cara de “point de bruxo” assim, como por exemplo, a Reptile House no Zoológico de Londres (onde no primeiro filme Harry descobre que consegue falar com serpentes) ou a estação de metrô de Westminster (que teve que ser fechada por um dia para que Harry Potter pudesse ir até o Ministério da Magia).

kings cross hotel

Mas outras parecem mesmo saídas do filme, e são as minhas preferidas: o exuberante St. Pancras Renaissance hotel, do ladinho da estação de King’s Cross (onde o carro de Weasley “decola”), o Leadenhall Market (uma jóia de arquitetura encravada no meio do bairro financeiro de Londres e onde parte do Beco Diagonal foi filmado lá)… e, claro, os estúdios da Warner Bros, em Watford Junction, onde estão quase todos os figurinos, cenários, roupas e equipamentos criados especialmente  para a saga: visita obrigatória para todos os fãs que querem ter uma overdose de Harry Potter em Londres!

Estúdios Harry Potter

Herança judaica

A primeira menção a um judeu em terras britânicas foi encontrada em 1128, mas não é como se eles já não estivessem lá antes – ou pelo menos quando os normandos chegaram, em 1066. Eles ficariam na Inglaterra até sua expulsão um tanto quanto brutal pelo rei Eduardo I. Muitos foram espancados, aprisionados na Torre de Londres e mortos.

(Cabe aqui uma nota histórica: esse rei nunca foi uma boa pessoa.  Ele ficou famoso por lançar uma guerra para massacrar os galeses, e como faltou dinheiro para isso, mandou taxar pesadamente os judeus e decretou a perseguição contra eles. Não satisfeito, resolveu anos mais tarde mandar prender o rei escocês, lançar várias ofensivas violentas ao país e ainda mandou torturar e matar o Mel Gibson no filme “Coração Valente”. Sujeitinho desagradável).

Os judeus só voltariam a se estabelecer no país, mais silenciosamente, sob o mandato de Oliver Cronwell (outro sujeito desagradável, aliás, mas por outros motivos) e voltariam a se estabelecer no centro financeiro de Londres e na parte leste da cidade. Ainda se vê poucos dos traços deixados por essa época: uma das ruas de Londres, a Old Jewry, perto da estação de Bank, costumava ser um gueto judaico por volta dos anos de 1700, e arqueologistas encontraram próximo dali um “mikveh”, uma banheira judaica usada por rituais e que provavelmente datava dos anos anteriores à perseguição de Eduardo I.

Mas a herança judaica mais perceptível data do século XIX, mas especificamente em torno dos anos de 1880, quando levas de judeus do leste europeu chegavam a Londres fugidos dos pogroms que assolavam a Polônia, Romênia e Rússia e, mais tarde, da perseguição pré-II Guerra Mundial. Estes se estabeleceram nos bairros de Whitechapel, Aldgate e Stepney. Ao contrário dos judeus que já estavam estabelecidos em Londres há séculos (e já eram donos de prósperos negócios), estes recém-chegados eram mais pobres, e trabalhavam como mercadores nas ruas e arredores de Brick Lane. Londres começou a inchar com bolsões de miséria na parte leste da cidade, já que junto com essas levas de refugiados judeus chegavam ainda protestantes huguenotes e irlandeses. East London virou o retrato da miséria na Europa moderna, cheio de crianças e mulheres morrendo de fome e sífilis (que, aliás, era muito popular por causa da prostituição. Ainda hoje um passeio simples pelo leste londrino revela construções da época, como antigos cortiços em que mulheres e homens pagavam a diária para poder dormir em uma cama (frequentemente as mulheres precisavam recorrer à prostituição como única alternativa desesperadora para não dormir na rua) e, inclusive, a fachada de um prédio onde se lê “Kitchen Soup for the Jewish Poor” – e cujo interior, curiosamente, deu lugar a apartamentos de luxo hoje.

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Foi esse o cenário e a época dos feitos do famoso Jack O Estripador, que matou cinco mulheres (há suspeitas de terem sido sete, na verdade) em menos de 6 meses e que nunca foi descoberto. Bem, até o motivo dele não ter sido descoberto tem uma razão: conversando com uma guia judia que mora há anos na região, soubemos que há indícios que apontam que Jack, na verdade, era um dos judeus da região que sofria de esquizofrenia e que a própria comunidade judaica resolveu “silenciá-lo” para que isso não exacerbasse o sentimento antissemita já tão tenso da época.

(E eu super recomento esse tour do Jack O Estripador que conta esse lado da história. Todo baseado em fatos históricos e não em sensacionalismo – vale conhecer!).

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Mas não é só de desgraça que vive East London. Se teve algum lado positivo nesta história do Jack, o fato de que seus crimes chamaram a atenção para a forma como viva essa parte de Londres, o que obrigou as autoridades a criar medidas de modernização e desenvolvimento para a região. De 1800 para cá, o entorno de Whitechapel viu a chegada e a partida primeiro de franceses huguenotes, depois judeus do leste europeu, e em seguida imigrantes de Bangladesh. Agora, aparentemente, está vendo a saída desses também, que estão dando lugar a yuppies, brechós alternativos e bistrôs moderninhos: finalmente a gentrificação chegou a East London.

Porém ainda dá para passear pela Princelet Street e a Fournier Street para ver os traços judaicos ainda presentes, sobretudo nas portas antigas das casas, em algumas estrelas de Davi aqui e ali e, porque não, nos bagels fresquinhos ainda à venda na Brick Lane, ponto final de qualquer dos tours pela área. Afinal, seja qual for o passeio, tem sempre a hora em que bate a fome. Justo, né?

Jack The Ripper 15

Veja também, no Porto: Belmonte: herança judaica e descobrimento do Brasil e a Sinagoga do Porto, por Sara.

Londres e Porto são cidades Portuárias

O que faz com que cidades nasçam e cresçam são um conjunto de diferentes fatores e condições favoráveis em um determinado espaço de tempo ou local. Algumas cidades nasceram por motivações políticas (como São Petersburgo, Camberra ou Brasília) e outras motivações comerciais. Londres é seguramente um exemplo do segundo caso, e o fator predominante é o rio Tâmisa, que desde o início (e estamos falando de desde quando os romanos andavam por aqui) permitiu a circulação de barcos carregados de bens a serem comercializados.

Como um país que teve a mais poderosa frota marítima do mundo, a relação da Inglaterra com o mar sempre foi muito intimista – e por causa dela pipocaram portos importantes espalhados pelo país, como Cardiff, Bristol e Liverpool. Mas o porto de Londres, que mesmo não tendo portas para o oceano, sempre gozou de uma vantagem geográfica especial: mais que estar localizado à beira do Tâmisa, ele era o porto mais perto da Coroa britânica e de quem mandava no pedaço, algo que os comerciantes ingleses tiraram bastante proveito ao longo dos séculos. O melhor exemplo disso é o ano de 1599: quem monopolizava o comércio de especiarias eram os holandeses, que naquele ano decidiram mais que dobrar o preço da pimenta no mercado. Revoltados, os comerciantes de Londres chamaram a então Rainha Elizabeth (a primeira) para uma reunião e criaram em conjunto a Companhia das Índias Orientais, um empreendimento em parceria com a coroa e mercadores para obter especiarias. O empreendimento foi um sucesso (bom, pelo menos para os ingleses), com navios partindo e chegando de Londres carregados de suprimentos, de onde seriam taxados, comprados e revendidos para as colônias na América.

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Uma das construções que servia como um dos armazéns de peixe ao longo do Tâmisa (esta fica perto da Torre de Londres) e que hoje foi transformada em Centro de eventos.

Como a aduana de então ficava na capital – afinal, a Rainha tinha que garantir a parte dela neste negócio – boa parte desse carregamento passava pelo Tâmisa e era armazenados nos milhares de armazéns construídos ao longo do rio (e que continuam lá, na área de Wapping,  que hoje vem se revitalizando devagar e já conta com alguns pubs bem gostosinhos). O Porto de Londres se tornaria, com isso, o maior porto do mundo na época (hoje é o segundo maior do Reino Unido).

Hoje o que não faltam são passeios que abordem esta relação portuária entre Londres e o rio. O mais básico, claro, são os passeios de ferry e cruzeiro pelo rio, mas eu confesso que eu prefiro os museus: há o National Maritime Museum, que tem uma parte dedicada à Companhia das Índias Orientais e suas repercussões (inclusive as ruins) na Inglaterra e no mundo, mas que é bem interessante do ponto de vista histórico. E a vantagem que, perto dele, há o Cutty Sark, o único cortador (barco à vela extremamente rápido) destinado a transportar cargas de chá que sobreviveu desde a era vitoriana. Outro passeio imperdível é pela Galeria Hay’s em Southwark, originalmente construída para ser uma doca de armazenamento de todos os produtos importados que chegavam à Londres (os mais notórios eram os navios carregados de chá provenientes da China). A construção foi toda revitalizada e está super elegante; mas ao invés de chá você pode comprar um colar na Accessorize; a galeria foi transformada em um elegante shopping com restaurantes e lojas.

Leia também, no Porto: Vale a pena fazer o roteiro das 6 pontes?, por Sara

 

Vinho do Porto

Ué, mas vinho do Porto não tem esse nome porque é vem da cidade do Porto, em Portugal? Bem, na verdade eles vem da cidade vizinha, Vila Nova de Gaia, mas isso é um detalhe: o lance é que os bons produtores podem até ser os nossos queridos amigos portugueses, mas os bons bebedores estão do lado de cá do Canal da Mancha, e a relação Londres x Vinho do Porto já vem de longa, longa data.

Rebobinemos a fita para o ano de 1373, quando Portugal assina o primeiro tratado comercial com a Inglaterra, que seria retribuído alguns anos depois com o Tratado de Windsor, em que os ingleses estimulariam o desenvolvimento agrícola na região do Douro. Tudo ia muito bem, depois disso: Portugal vira a principal potência marítima, amplia suas rotas de comércio e em 1465 manda o primeiro carregamento de vinho do Porto para a Inglaterra, que por sua vez se apaixona pela bebida. Mas o amor definitivo mesmo viria no século XVIII, quando as relações estremecidas com a França e Espanha interromperiam o comércio com esses dois países e deixaria vários ingleses enófilos ressentidos com a falta de um ótimo vinho. Se o mito da época de que o vinho do Porto foi criado por marinheiros ingleses é totalmente furada, há uma pontinha de verdade sobre a relação entre os navios ingleses e os vinhos do Douro: documentos e cartas históricas de antigos importadores ingleses dão indícios de que parte do sucesso do vinho português nas terras britânicas reside no reconhecimento de que o sabor forte e doce do vinho agradaria o paladar local e, mais importante, estas bebidas fortificadas resistiriam à viagem de navio. As garrafas eram, então, trazidas do Porto e armazenadas em enormes caves ao longo do Tâmisa, construídas especialmente para isso.

Pronto: o vinho do Porto caiu perfeitamente nas tradições e rituais ingleses, especialmente entre a aristocracia londrina. Até hoje é comum entre as famílias inglesas guardar uma garrafa de vinho do Porto em uma destas caves ao longo do rio logo após o nascimento de um menino, e devolvido apenas quando este completasse 21 anos – a idade do “consentimento” – quando só então ele beberia seu primeiro “vinho do porto envelhecido” (mas apenas alguns goles: a ideia é que esse rapaz sempre degustasse um gole da bebida – que seria tão vintage quanto ele – a cada aniversário de sua vida).

A Sara levantou um ponto importantíssimo sobre isso (nada como conversar com uma portuguesa que entende das coisas! Segundo ela, “é que um vinho do Porto Vintage – e um vinho do Porto envelhecido em garrafa é definitivamente um belo vintage! – tem de ser consumido num período máximo de 24h, a partir do qual começa a perder as suas qualidades, e começa a servir só para tempero de carne. Todas as tours nas caves do Vinho do Porto reforçam essa ideia”. Isso significa, então, que o primeiro vinho do Porto vintage que o rapaz inglês vai beber em seu aniversário de 21 anos será realmente magnífico, mas o do ano seguinte (se ele guardar a garrafa aberta) talvez não seja muito diferente do que um vinagre. 

O pai do meu marido recebeu uma garrafa dessa aos 21 anos e eu fiquei de perguntar a ele sobre isso – mas ele não me responder até a data em que eu tinha me comprometido a publicar isso. Fico devendo a resposta para vocês e prometo atualizar em breve (mas se me permitem uma consideração, pelo menos do pouco que eu conheço sobre os jovens ingleses de 21 anos, acho muito difícil eles não beberem a garrafa toda de uma vez!).

O vinho também era dado a crianças se estivessem doentes; por exemplo, o primeiro ministro inglês William Pitt tomara a bebida quando garoto pois acreditava-se que era um remédio para gota. Outra tradição era servir o vinho do Porto para os convivas após o jantar, servindo sempre da direita para a esquerda, sem jamais deixar a garrafa tocar a mesa até que todos os convidados tenham se servido – e ai de quem demorasse a passar o vinho para o próximo participante, pois seria constrangedoramente chamado à atenção! Ah, e o vinho servia para inclusive para indicar as inclinações políticas de alguém: se você for convidado para jantar na casa de alguém e o anfitrião servir vinho do Porto, é um sinal de que ele é do partido trabalhista; mas se a bebida servida for um champagne, o anfitrião é claramente um Conservador.

“Se tem uma característica muito peculiar dos ingleses”, dizia Jean, a avó inglesa do meu marido e ex-diretora da Universidade de Oxford, “é que nós somos muito ‘clubable’. Não importa a atividade que você escolha – basta procurar um pouco, e você encontrará mais um clube de pessoas que se reúnem para praticá-la”. E, óbvio, isso vale para vinho do Porto também. E como não é só de pubs e cerveja que vivem os londrinos, é relativamente fácil achar wine bars charmosos e super interessantes pela capital inglesa para dividir uma garrafa (ou não) entre amigos. Minha dica: pessoalmente eu gosto muito do Gordon’s Wine Bar, um dos mais antigos da cidade e que fica escondido pertinho da estação de Embankment. A parte interna do bar fica dentro de uma cave subterrânea de verdade – é preciso andar abaixado para entrar, e a iluminação é exclusivamente por velas. Mas para quem quiser a harmonização delicinha vinho do Porto + comida portuguesa, a dica é o restaurante Portal que tem um cardápio apaixonante (inclusive queijos Serra da Estrela) e uma seleção ótima de vinhos portugueses vintage – que, aliás, a Sara ensina como escolher um bom exemplar aqui.

Comments

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Clarissa Donda
Sou jornalista e escritora. Eu criei esse blog como um hobby: a idéia era escrever sobre minhas viagens para não morrer de tédio durante a recuperação de um acidente de carro. Acabou que tanto o blog quanto as viagens mudaram a minha vida (várias vezes, aliás). Por isso, hoje eu escrevo para ajudar outras pessoas a encontrarem as viagens que vão inspirar elas também.

2 COMENTÁRIOS

  1. Muito legal , sua idéia . Vou tentar passar para uns amigos portugueses , envolvidos a muitos anos com ” Ramos Pinto ” . Parabéns pela matéria .

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